Júlio Resende sonhou que acompanhava Amália Rodrigues e fez dessa quimera uma das aventuras mais fascinantes do presente musical português. É a história de um músico filósofo que descolou do jazz e, pelo caminho, encantou toda uma geração de novas fadistas.
Júlio Resende foi tocar o disco Amália a Belgrado, em outubro de 2013. “No final do concerto algumas pessoas vieram dizer que se tinham arrepiado e essas coisas bonitas que às vezes me dizem. Eu perguntei se antes conheciam Amália [Rodrigues]. Disseram-me que já tinham ouvido falar, mas que nunca a tinham ouvido cantar. Fiquei feliz por ter tocado alguém que eu procurei amar profundamente e perceber que esse amor me fez levar a magia dela a outras pessoas. Como se alguém pudesse continuar o teu caminho… o caminho dela.”
Amálias assim só houve uma, a mesma que chegou ao Panteão Nacional com o título de maior voz portuguesa do século XX. Em 2013, 14 anos após o desaparecimento da diva do fado, o pianista Júlio Resende decidiu prestar-lhe tributo no seu primeiro disco a solo. Um disco surpreendente, só ele em piano acústico e os clássicos da canção de Lisboa que Amália imortalizou. Isto até ao não menos inesperado remate do alinhamento, que dispensa o acompanhamento à guitarra do primeiro registo de “Medo” (1965) para produzir um encontro mágico da cantora e do pianista. Um encontro que obviamente nunca aconteceu.
Resende foi para a estrada com Amália no piano, e o fado dentro dele nunca mais parou de crescer. De tal maneira que o seu novo lançamento é Fado & Further, o registo ao vivo do programa da digressão, onde conta com a participação da espanhola Silvia Pérez Cruz, com quem já subiu ao palco para uma versão livre de “Cucurrucucú Paloma”, no Auditório Gulbenkian, em Lisboa. Há ainda um DVD de bónus que inclui uma conversa com o escritor Gonçalo M. Tavares.
Quarto a solo
Amália por Júlio Resende foi o primeiro a solo, mas não uma estreia de um músico que se fartou da bitola da idade. “Tenho 33 anos, mas não gosto muito de dizer a idade, muito menos do rótulo de jovem promessa, que me aplicaram uma série de vezes. Isso só acontece porque as pessoas pensam a juventude e não a obra.” Uma posição que se compreende, sobretudo quando o pianista nascido em Faro lançou três álbuns de jazz à frente de trios e quartetos (no prestigiado selo português Clean Feed), mesmo antes de atingir a casa dos 30 anos de idade.
Foram três discos enraizados nos grandes clássicos do jazz, mas com desenvolvimentos pouco ortodoxos, que depressa lhe valeram reconhecimento aquém e além-fronteiras. A propósito de Jazzatustra, o segundo álbum de 2009, lê-se no influente All Music Guide: “Este registo é um excelente exemplo de como os músicos de jazz europeus tomaram inspiração dos seus homólogos norte-americanos e elevaram a fasquia ao ponto em que são eles agora que estão a fazer música refrescante e original, enquanto os americanos teimam na tradição. Não tenham dúvidas: Resende e a sua banda estão no caminho certo”.
Com elogios tamanhos, fácil seria vaticinar uma carreira tranquila nos circuitos de jazz, mas Resende quis arriscar para além disso. “Depois de três discos com bandas decidi que queria gravar a solo. Foi então que me voltei para o fado, porque do que mais gosto é de dizer as coisas que estão em ebulição dentro de mim. Ora já estava a trabalhar o fado há meia dúzia de anos, já tinha feito alguns duetos com fadistas e sentia que conseguia realizar esta equação: eu, o piano e o fado. Achei que era o disco mais pessoal que podia fazer e pelo caminho ainda imaginei um dueto com a Amália, com quem aprendi as canções do fado, graças às suas aparições na televisão e na rádio.” Vale ainda a pena mencionar o belíssimo teledisco que documenta esse encontro virtual, da autoria de Pedro Cláudio (disponível em youtu.be/En7gHOAjGvI).
Começar do zero
Antes de Resende raramente o fado se cruzou com o jazz. Amália e Don Byas gravaram juntos em 1967, Carlos Paredes e Charlie Haden em 1990 e pouco mais. Daí o pianista algarvio falar de desafio a propósito de Amália: “Dentro do jazz há toda uma história do piano, mas dentro do fado não há essa história. Senti-me muito a começar do zero. Amália mergulha no fado, mas está impregnado de improvisação. Digo improvisação e não jazz, porque o jazz se conota com a música americana”.
Amália é fado à mistura com jazz que não é bem jazz. Mas o que são o fado e o jazz para Júlio Resende? “Não sei muito bem definir o fado. Sei que é alguma coisa muito profunda, ligada ao silêncio, à ausência, à tristeza – mas também à alegria de esperar alguém que pode estar para vir. Então desenvolvi a fantasia de que o fado começou nos Descobrimentos com as mulheres que esperavam os homens que partiam e eles que esperavam regressar para elas. Todo esse choro, toda essa esperança constituíram o fado para mim.” E o jazz? “Um dos lemas mais bonitos do jazz é a liberdade. Isso do ‘Não repitas, faz diferente’. Sinto-me um músico em aberto que quer constituir uma identidade, desde que essa identidade não seja sempre a mesma.”
Resende escolheu Amállia pela voz e pelo carisma, mas também pelo reportório – e tudo aquilo que representa em termos de identidade nacional. “Foi com ela que aprendemos estas canções, as canções que temos na memória. A minha ideia foi pegar em canções que pareciam até gastas e mostrar que esse esgotamento tem só a ver com a maneira como as olhamos. Se olhares com atenção para alguém com que vem vives há muito tempo podes sempre (re)descobrir aquilo que ela tem de especial.”
Se boa parte dos portugueses cresceu a cantar Amália, isso já não se verifica além-fronteiras. Por isso a internacionalização é outro desafio: “Queria ver qual seria a reação de um público que não conhece estas canções. Nos concertos que dei na Alemanha percebi que pode haver uma reação instantânea, mesmo que o público não conheça as letras, ou que nunca as tenha ouvido. E o que aconteceu foi que os discos que levei se venderam tão depressa no primeiro dos concertos alemães que acabei por ter de guardar alguns para vender no segundo”. Como Amália, Resende defende que o melhor do mundo é dar e receber: “Não acho grande piada a viajar só para passear – prefiro descobrir um sítio, inspirar-me nele e depois dar alguma coisa em troca. Gosto sobretudo de viajar para tocar”.
por Luís Maio foto Pedro Claúdio
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